sábado, 18 de setembro de 2010

Uma família sem laços de sangue - Prólogo

Homenagem ao Saint Darlan, marco inapagável da minha vida e da Bia, que eu não poderia deixar passar sem algo grandioso. Só falta chegar ao fim.

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Aquela era a rua onde eu vivera quase a minha viva inteira. Era praticamente inabitada, já que estava situada num canto da cidade de Porto, em Portugal, quase que completamente abandonada pelo governo. A praça, hoje sem árvores, estava vazia e coberta por uma camada de neve. Afinal, quem, numa véspera de Natal, estaria na rua, ainda mais naquela, com toda aquela neve? Só mesmo eu. E eu não deveria estar ali. Meus pulmões já não aguentam a escassez de ar e estão lutando sempre por uma nova lufada, limpa e fresca, e, junto com meu coração inconstante – para o qual cada batida é como uma Guerra Fria - mesmo que seja difícil, me mantêm respirando.

Ali no fim da rua há algumas paredes erguidas formando uma grande construção. Ali foi onde morei desde que me considero ‘independente’ e é lá onde pretendo passar meus últimos dias, que não são muitos, eu posso sentir. Aquela construção é um orfanato construído em 1953 pelo governo de Portugal, e eu sou o Diretor.

Lentamente, pois meus pés já não são como quando eu tinha 16 anos, vou voltando pela rua larga, cuidando para não ser pego de surpresa pela neve escorregadia. Ali dentro sim, há vida, amor e calor humano em sua forma mais genuína. Vou morrer orgulhoso sabendo que fiz parte disso, e que contribui bastante para que o Orfanato Saint Darlan seja o que hoje é. Por mais que esteja mal das penas, meus ouvidos ainda funcionam bem – talvez a velhice não tenha chegado com tanta brutalidade para mim... – e captam vozes que vêm de dentro dos altos portões.

É véspera de Natal, bolas! Muitos de nós não somos ligados por laços sanguíneos, mas órfãos e professores formam uma grande família. E no Natal tudo isso é alimentado, assim como a chama de nossa lareira. Nunca vi crianças tão felizes quanto os alunos do Saint Darlan nessa época do ano. Outros ficariam exultantes por não ir às aulas, porque as ruas estão atoladas de neve, ou qualquer outra baboseira. Mas aqui, creio eu que todos desejamos secretamente a chegada do Natal. É ele que nos dá esperança para o novo ano que aponta no horizonte; esperança para cada criança de ser adotada por uma família – um pai, uma mãe, talvez irmãos e até um cachorro – e ser amada por ela de um jeito que sua família biológica não a amou.

Por isso sorri ao ouvir aquelas vozes altas e cantantes, exclamando alguma coisa que eu não conseguia entender.

Os portões estavam destrancados, então simplesmente os abri e entrei. Havíamos conquistado a confiança da grande maioria das crianças das quais cuidávamos e eu não sentia mais necessidade de trancá-los com tanta freqüência. Lembro-me de várias noites em que saí escondido do orfanato, graças a um garoto ainda mais encrenqueiro do que eu que havia afanado as chaves e fez cópia de cada uma e as escondia em algum canto discreto perto da porta em questão.

No pátio, ninguém, como eu previa. As salas do orfanato certamente estavam bem aquecidas e aquela perspectiva era realmente convidativa. Apressei meus passos ao longo do caminho que ligava os portões até a entrada principal. Em cada lado havia um dormitório, um para meninas e outro para meninos. Suas estruturas de dois andares alongadas abrigavam muitas camas e ali era o único local que eu mesmo exigia privacidade para os alunos. Pelo pouco que consegui ver àquela distancia não parecia haver muita gente ali dentro.

Finalmente, as grandes portas da entrada principal.

Não sei se é apenas comigo, mas elas costumam emperrar justo quando tento abri-las. Prefiro não pensar na hipótese de que não tenho mais força para sequer abrir uma porta e considerar que elas apenas não vão com a minha cara. Contudo, até as portas estavam em espírito natalino e abriram-se com um rangido breve e típico.

Nunca dávamos aulas nas tardes de véspera de Natal. Os garotos já passavam o dia inteiro com aulas, e ainda moravam ali... Alguns anos depois de eu ter me tornado diretor, nós da administração revogamos as aulas da véspera e também as aulas no período da manhã do dia vinte e seis. Assim, logo que abri as portas da entrada, um fluxo de vozes me atingiu em cheio, altas, alegres e contagiantes, espalhadas pelo hall, pela sala de estar e quem sabe até mesmo na cozinha.

Poucos perceberam minha entrada discreta, alguns cumprimentaram com a cabeça enquanto passava por eles. Um bando de crianças veio até mim e deu-me um abraço conjunto que me levou às alturas! E também quase ao chão, quando me soltaram e perdi o equilíbrio sobre as pernas fracas. Os mais novatos ali desejavam um “Obrigado por tudo, senhor”, mas os meninos da casa diziam um “Feliz Natal, tio Gui!” delicioso de se ouvir. Eu deixava que me chamassem de ‘tio’, pois quando você chega aos 79 anos já não liga muito para como as pessoas te chamam.

E eu gostava que me chamassem de tio Gui.

- Senhor Cardoso... – e junto àquelas palavras, senti uma mão pousando levemente sobre meu ombro. (Uma coisa que é absolutamente desagradável sobre a velhice é que as pessoas parecem ter medo de te tocar. Pode ser que as pessoas achem que um único gesto pode nos aborrecer, ou tenham nojo do toque, como se ficar velho fosse uma doença contagiosa reservada apenas para alguns. Talvez as pessoas tenham medo que, ao nos tocar, desencadeiem um processo em nosso corpo e ele nos leve à morte. Talvez tenham medo que um simples toque possa nos levar ao chão, nossos ossos leves e fracos impulsionados por uma força praticamente insignificante... Não sei. Depois que passei dos sessenta anos minha cabeça foi ocupada por várias teorias.) Virei-me e vi um dos meus professores com um pequeno sorriso nos lábios. – Feliz Natal, senhor.

E abraçou-me.

Seu nome era Trevor e lecionava gramática, por isso era abominado por vários alunos. Mas não por mim. Não havia necessidade de ser tão formal afinal Trevor era um bom e velho amigo meu – mesmo que ele fosse uns trinta anos mais novo do que eu – mas entendi sua formalidade como uma forma de demonstrar respeito.

- Ah, meu amigo! Feliz Natal para você também!

Trocamos cumprimentos e logo Trevor foi deixando de lado seu protocolo memorizado.

- Você sabe onde está Amanda? – perguntei-lhe após uma breve conversa.

- Na sala dos professores. Recebemos uma ligação do governo. Sabrina está com ela, ajudando com alguns papéis.

- Obrigado, meu irmão. Nos vemos na ceia.

Sabrina.

Sorri mentalmente apenas lembrando-me de seu olhar brilhante. Anos atrás eu não poderia imaginar o quanto gostaria daquela garota. Eu podia odiá-la simplesmente por sua família, mas na vida você aprende que não vale levar o ódio muito além da segunda geração. Certamente eu só não sentia mais repulsa pela avó de Sabrina do que pela minha própria mãe biológica.

Se Amanda estava com Sabrina, então tudo estava bem.

Por sorte, a sala dos professores era ali no térreo. Tudo que precisava fazer era me arrastar até a porta por entre aquele mundo de gente atulhada nos corredores. Nessas épocas sempre parecia que abrigávamos muito mais órfãos. Eu podia apostar que, se algum fiscal visse tomaria providencias para que o número real fosse levantado, apenas para ter certeza de que não estávamos superlotados. Apesar de que, depois de alguns acontecimentos que vou narrar, eu tinha o maior esmero com cada detalhe da lei que nos sustentava.

Então arrastei meus pés. Eu sempre arrastava meus pés, já que não conseguia dobrar os joelhos perfeitamente, impulsionar uma perna para frente e empurrar meu corpo com a outra que fica para trás. E arrastando os pés cheguei à porta da sala dos professores. Bati três vezes com os nós de meus dedos enrugados, esperei alguns segundos e abri a porta. Torrentes de memórias voltaram a minha mente; todos os tipos de memórias que eu tinha daquela porta; felizes e tristes, raivosas ou serenas, entrando e saindo dela; grandes decisões que foram tomadas ali dentro. Tantos anos, tantas pessoas, tantos sentimentos; tudo como num flashback, como num livro, quando uma pessoa está morrendo e um filme de sua vida passa diante de seus olhos.

Mas minha vida não era um livro e eu não ia morrer. Não ainda.

Sabrina estava vindo em direção à porta quando a abri e precipitei-me para dentro.

- Senhor Gui, que bom que voltou! Já estávamos ficando preocupadas. – disse ela, com um sorriso que despertou o meu. Para minha sorte, tossi também e suas feições tornaram-se sérias.

- Estou bem, Sabrina. – Adiantei-me antes que ela perguntasse como estava meu pulmão. – Trevor me disse que recebemos uma ligação do governo...

Ela pareceu aceitar que eu estava ‘bem’ e ajudou-me a ir até a mesa principal.

- Não é nada de mais. Só ligaram para saber quando vamos entregar o relatório anual.

- E o que você disse?

- Que semana que vem, no máximo na outra segunda-feira, ele estaria pronto.

- Então teremos uma vistoria, provavelmente.

- Sim, senhor. Mas não temos o que temer, não é?

- Não mesmo.

Sabrina era muito eficiente.

Minha atenção foi tomada pela cabeça que se virou na minha direção assim que contornei a mesa principal. Era Amanda, com seus fios loiros misturados aos fios brancos, quase imperceptíveis. Eu a invejava, pois a sua idade não ficava estampada em placas de neon por todo o seu corpo. Amanda é minha esposa há uns 50 anos. Não sei, deve ser algo assim. Não estou a fim de fazer as contas agora no fim da vida. Vivi ao seu lado, dei-lhe apoio quando precisou, amei-a, ainda a amo e isso é tudo que importa.

- Guilherme... Já te disse para não ir à rua com esse tempo. – disse ela, com uma voz doce, porém um leve tom recriminador.

- Desculpe. Mas realmente, não aguentava mais ficar naquele quarto. Eu ia surtar se não fizesse alguma coisa.

Ela sorriu. Ela entendia. A idade também já não lhe permitia todos os movimentos, mas era absolutamente mais ativa do que eu.

- Tudo bem, mas, da próxima vez, me chame quando quiser dar uma volta.

- Tudo bem, tudo bem.

Eu parecia e muito com um velho resmungão, mas, no fundo, Amanda estava certa. Se meu coração entrasse em acordo com meu pulmão e eles simplesmente decidissem começar uma greve, eu não teria chance nem de gritar “Pudim!”.

Sabrina estava quieta, sentada em uma cadeira ao lado de Amanda, concentrada transcrevendo anotações de um papel para outro. Não prestava atenção em nossa conversa, pois essa era a educação que havíamos lhe dado. Inegavelmente, aquelas eram as pessoas mais importantes para minha vida. Havia outras, claro, mas Amanda e Sabrina eram quem cuidava para que minha vida se prolongasse, dia após dia, do nascer ao pôr do sol e durante toda a noite entre eles.

Eu sabia que elas deviam estar preparadas para quando eu me fosse de vez para outro lado. Amanda certamente sentiria muito minha falta. Já estou me conformando que vou ter que partir logo e penso que nossa vida não poderia ter sido melhor. Não me arrependo de nada, não acho que faria algo diferente se tivesse a chance. As coisas são escritas à caneta e não temos capacidade de apagá-las. Amanda e Sabrina - na verdade não somente elas - sofreriam e isso eu não podia mudar.

Afinal, não é todo dia que se cura um câncer.


Capítulo Um

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