Ver prólogo.
Capítulo Um
Há uns 70 anos eu não tinha nenhum câncer. Eu era saudável como um menino de 10 anos deveria ser; sorrindo, correndo, brincando e incomodando. Só que nessa última parte eu era um tanto diferente das outras crianças e foi exatamente por isso que acabei indo para o Orfanato Saint Darlan.
Não fui um filho exemplar, muito menos um aluno aplicado. Eu matava as aulas desde a primeira série, e só passava as séries porque conseguia colas antes dos provões, naqueles dias escaldantes do verão, quando os garotos mais jovens eram totalmente subornáveis. Eu lhes oferecia um sorvete duplo cheio de chocolate e eles me traziam as respostas prontas da prova de matemática. E eu era o melhor, abordando os pirralhinhos com cara de nerd e dissuadindo-os a prometer não abrir o bico ou seriam linchados no beco atrás da escola até que todos os seus dentes de leite estivessem espalhados pelo chão. Eu tinha uma altura avantajada naquela idade e acho que isso lhes metia medo e, junto com os boatos escabrosos sobre mim que circulavam pela escola pública, consentiam prontamente com qualquer coisa que eu “pedia”.
Naquela época eu não ligava para nada além do meu prazer instantâneo; queria me dar bem e faria qualquer coisa para conseguir aquilo.
Todos os presságios indicavam que eu iria seguir uma carreira no crime, ser um ladrão, matador ou qualquer coisa assim. Minha mãe tentava me colocar no caminho certo, mas ela ligava mais para meu irmão do que para mim. Ele era um completo CDF, sabia tudo e se exibia por isso. Depois que fui levado de casa, nunca mais o vi.
- Não sou mais tua mãe! Não tive um filho para virar vagabundo!
Foram as palavras de minha mãe depois que me pegou no flagra fumando no banheiro. Minha culpa, admito, fui inconsequente e não pensei que ela poderia sentir o cheiro da fumaça no resto da casa. Tomei uma surra naquela noite, daquelas doídas, e as chineladas de minha mãe brindaram minhas costas e minha bunda sem dó com vergões arroxeados. Fugi durante a noite e sumi durante uns três dias, acho, mas perdi a noção de dias como se perde a noção do dia da semana quando o feriado cai na quarta. Vaguei pelas ruas escuras à noite, procurando alguém para assaltar e comer alguma coisa com o dinheiro que conseguisse, e, durante o dia, achava um canto escondido em um parque arborizado e dormia até o pôr do sol.
Um policial fardado, parecendo novato por ser muito jovem, ouviu meus roncos barulhentos num daqueles dias e me obrigou a voltar para casa sob a ameaça de outra surra. Voltei, mas não trocava uma palavra com minha mãe ou meu irmão. Meu pai naquela época não devia sequer ter um trabalho quem dera se tivesse alguma consideração para com os filhos que deixara na barriga daquela mulher ingênua que ele conhecera num lugar que ele pensava ser Las Vegas. Ela queria nos educar, queria que fôssemos homens de bem e que conseguíssemos bons empregos, para então ter boas famílias e uma poupança recheada que nos sustentasse e a ela também.
Obviamente, ela sonhava alto. Mesmo que meu irmão tenha se dado bem na vida, sendo inteligente e tudo o mais, para ela eu era um total e completo desastre.
Em certo dia, quando ela estava com um humor abominável e eu, no auge da minha rebeldia, ela pegou o telefone e ligou para o Conselho Tutelar que, ávido por um caso que repercutisse na mídia, não perdeu tempo para vir até nossa casa no subúrbio e ver que caso estava prestes a pegar. Encontraram um garoto mau vestido, desleixado, sujo, magrelo, com olheiras e, para seu desgosto, mudo.
Não troquei nenhuma palavra com nenhuma senhora do Conselho, nem com o psicólogo para o qual tentaram me arrastar. Após uns meses de indiferença da minha parte, aquela que era minha mãe apenas porque éramos do mesmo sangue decidiu que não queria mais nada daquela embromação, chamou a velha que eu declarara minha inimiga mortal e perguntou à ela se ela podia fazer como aquelas mulheres dos seriados da televisão que abdicam de seus filhos assim que eles nascem e os dão para adoção. A senhora disse que era um processo um tanto diferente, mas era possível sim. Semanas depois, ela assinou um bolo de papéis cheios de palavras onde ela renunciava seu direito sobre mim. Ela sequer leu o documento, apenas pegou a caneta mais porca que achou, arranhou furiosamente na parte de trás para que ela funcionasse e rabiscou sua assinatura.
Consegui meter, ente minhas roupas, uns maços de cigarros que escondia dentro do meu colchão e isso foi tudo que levei de casa. Não olhei para trás. Tinha a intenção de nunca mais voltar ali. Assim fui levado ao Orfanto.
Minhas ideias acerca dele estavam muito erradas. Um Ford caindo aos pedaços me levou até a rua vazia do Saint Darlan. Vi primeiro o topo de uma pequena torre do prédio principal. Lá havia uma cruz e lembro-me que pensei que teria uma educação católica rígida, ainda mais pelo nome do tal orfanato. Decidi, antes mesmo de atravessar os portões, que eles não iam me transformar num coroinha submisso e devoto. Como eu estava errado.
O lugar parecia bom: era limpo, bem cuidado e muito mais confortável do que eu achava que um orfanato católico seria. Na sala de estar, o primeiro lugar por onde passei, havia várias crianças assistindo Pokemón em uma televisão de 21 polegadas, rindo e conversando como se não tivessem que decorar aquelas orações intermináveis e indecifráveis. O fato era que eles não precisavam mas, em minha mente, aquele estereótipo era o único que eu considerava.
Claro que eu achara estranho aqueles adolescentes estarem jogando futebol no pátio. Mas mentes poluídas não levam em consideração outras opções e tudo o que eu pensava era que, agora que eles tinham conseguido me confinar naquele lugar, eu não conseguiria sair nunca mais.
Fui levado à sala da diretora, Catarina Montez, uma mulher com seus 30 e poucos anos. Tinha olhos penetrantes e uma voz falsamente tranqüilizadora.
- Olá, Guilherme! – ela disse, com vivacidade, o que me deixou com raiva dela. Você também ficaria se fosse um garoto de 12 anos arrancado de sua casa (quero dizer, das ruas, pois em casa era o último lugar para procurar por mim) e ouvisse sua futura mentora falando coisas simpáticas naquela voz.
A verdade era que Catarina não era flor que se cheirasse e com o tempo eu e muitos órfãos íamos descobrir isso.
- Oi – falei carrancudo, pois não queria transmitir simpatia, mas sim que ela não teria paz se me obrigasse a limpar o chão com uma escova de dente.
Catarina me explicou como era a vida ali, falou sobre as aulas e toques de recolher, como ela tentava fazer tudo ao seu alcance para manter nossa qualidade de vida bem acima do nível dos outros orfanatos.
- Não vou ter que aprender aquelas orações chatas? – perguntei, franzindo minha testa.
Ela riu, riu muito. Disse que a únicas coisas que eu teria que decorar eram os horários das refeições e as matérias das aulas.
- Assim você vai se dar bem quando sair daqui.
Era como uma mancha branca naquele mar de águas escuras no qual eu achava que estava mergulhado.
- Quando fizer 18 anos, é claro, ou se alguém quiser adotá-lo – disse Catarina, disfarçando um sorriso debochado nos lábios. O que nunca vai acontecer, quem vai querer adotar um garoto-problema como você? Eu podia apostar meia dúzia dos cigarros que tinha levado escondido que era isso que ela estava pensando. Conseguia imaginá-la com uma capa preta e maquiagem escura, parecendo a Morticia, falando numa voz diabólica que eu ia apodrecer ali até os ratos transformares meus ossos em pó.
Depois daquela conversa, conheci o resto do orfanato. Tudo era bem arrumado e surpreendentemente bem cuidado. Tinham até mesmo uma sala de jogos com uma tevê grande, uma pequena coleção de filmes e um Nintendo bem conservado. A cozinha tinha armários cheios de comida; as quadras de esporte eram bem equipadas. Comecei a imaginar os métodos de tortura que Catarina usava para fazer aquelas crianças se comportarem tão bem que nem rabiscavam as paredes.
Procurei a cama mais afastada de todas, no dormitório masculino, para onde me levaram depois, e joguei minhas coisas sobre as cobertas. Algumas camas estavam arrumadas, em outras não dava para diferenciar os lençóis dos finos cobertores, por isso escolhi uma que estivesse perfeitamente alinhada. Ou o garoto era muito asseado ou ninguém usava aquela cama. Olhando ao redor notei alguns pôsteres de cantores e jogadores de futebol sobre as cabeceiras. Isso seria permitido num orfanato católico? Muito provavelmente não, mas não estava a fim de levar aquilo em consideração.
No inicio daquela noite conheci meus colegas de dormitório. Eles eram de todas as idades, dos seis aos dezessete – idade máxima para os órfãos que ainda estavam ali – e também tinham as mais variadas características. Descobri logo cedo que tinha escolhido uma cama onde ficavam os garotos ‘da pesada’.
Um garoto grandão entrou no dormitório, horas depois do anoitecer, seguido dos outros meninos um pouco mais novos. O gigante passou os olhos pelas camas, espalhando sua superioridade entre os garotos covardes. Quando seu olhar caiu sobre a carne nova do pedaço – ou seja, eu – minhas pernas quase viraram gelatina. Ambientes desconhecidos e hostis podem transformar em gelatina até as pernas do garoto mais corajoso.
Havia um brilho cruel em seus olhos, que não pareciam muito inteligentes, e seu sorriso era grande e cheio de malícia. Enquanto andava seu peso oscilava de um lado para o outro e várias vezes achei que ele ia tropeçar em seus próprios sapatos. Também pensei que estava para ganhar aquela típica surra de boas-vindas, mas o grandão me surpreendeu indo direto para sua cama, que era apenas duas depois da minha.
Era como a visão dos comensais da morte sentados ao redor de seu grande Lord Voldemort. Eles riram alto até as luzes serem apagadas, e durante todo esse tempo senti os olhares do gigante em minhas costas enquanto arrumava minhas roupas nas gavetas que haviam me cedido.
Dormi muito mal naquela noite, esperando que puxassem meu calcanhar no meio da madrugada. Sempre que conseguia relaxar e cochilar um pouco, um barulho qualquer me acordava de novo, assustado.
O Sol surgiu preguiçoso no horizonte. Minha espera pela luz foi longa, e serviu apenas para me comprovar que o tempo é relativo. As horas que eu passara acordado – que pareceram muito mais do que realmente haviam sido - somadas a toda aquela ansiedade e angústia duplicaram meu cansaço na manhã seguinte.
Eu tinha tomado uma decisão enquanto me revirava na cama. Não ia ser inimigo daquele garoto. Ele não era uma pessoa que se fosse querer para oponente. Além de ser o tipo de gente com quem eu andava na rua, não estava a fim de passar outras noites com medo de apanhar. Apesar de tudo, eu tinha doze anos e não achava que sairia ileso numa briga com aquele brutamonte.
Na hora do café da manhã, dei um jeito de ficar na frente do garoto na fila do refeitório. Esperei que ele chegasse e só então peguei uma bandeja. Ele fingiu que não viu algumas meninas novinhas e furou a fila, ficando logo atrás de mim. Virei-me e lhe dei um sorriso malandro.
- E aí, cara? Beleza?
Quase não segurei o riso, certo de que o tinha pegado em baixa guarda, pela cara que ele fez. Com certeza ele não esperava que eu fosse falar com ele. Olhou-me sério e piscou os olhos, mal acreditando que aquele verme recém-chegado tivera a audácia de falar com o rei da cocada preta. Esse era um truque que eu prendera na rua: falar com o cara como se ele fosse um velho conhecido seu. Pelo jeito dera certo.
- E aí? - ele retornou a pergunta. Ficamos em silêncio, afinal ele não podia ser legal com o novo órfão.
Continuei andando na fila, sem me distanciar muito do bando e não deixando que eles passassem à minha frente. Grandão encheu bandeja com muitos biscoitos de chocolate – agora eu sabia de onde vinha toda aquela massa gordurosa – e já foi saindo, seguido pelos comensais.
- Ei, posso sentar com vocês? – perguntei com a maior cara de burro e inocente que pude fazer. Estava bajulando o chefe para poder entrar para o grupo, estava arriscando meu pescoço, mas preferia isso a me sentar na mesa dos derrotados. Hoje, tanto tempo depois, e lembrando tudo isso, penso em como fui imprudente. Não ligava se apanhasse um pouco, buscava desesperadamente alcançar aquilo que estava no topo da minha lista de desejos e me arriscaria se fosse necessário. Meus fins justificavam os meios. Na opinião do Guilherme de doze anos, era melhor fazer parte daquele bando do que de bando nenhum. Ali eu teria ao menos alguma proteção e não seria um dos alvos daqueles caras.
O grandão deu de ombros, olhando para seus companheiros, que também repetiram o gesto. Então ele olhou para baixo, para mim. Parecia ter recuperado sua superioridade e me olhava como se eu fosse uma barata que ele ia pisar enquanto comia um daqueles biscoitos de chocolate, tão cuidadosamente quanto Will Smith pisava nas baratas extraterrestres de Homens de Preto.
- Vamos ver se tu se encaixa.
Eu me sentei com eles naquela manhã e ocupei um lugar no canto da mesa até o dia em que Alfredo – descobri com o tempo que esse era o nome do grandão – foi embora do orfanato, assim que completou 18 anos. Depois disso passaram a me ver como seu Lord Voldemort. Eu era o único com espírito de liderança, mas considerando que todos eram meio desmiolados, nenhum se encaixava para o cargo. Fulano me tivera como seu protegido em seus últimos meses. Quando ele foi embora eu tinha apenas 14 anos, mas já aprendera todos os truques para trapacear os garotos menores e tirar vantagens deles. Tinha aprendido a burlar as regras do orfanato – ensinamentos que tinham passado através de gerações de líderes - e não foram raras as vezes que forrei meus cobertores com travesseiro à noite, para, se alguém fizesse uma ronda, não visse a cama vazia quando, na verdade, eu estava bem longe dali.
Verdade seja dita, o período de adaptação no orfanato Saint Darlan foi um tanto difícil. As coisas não eram mais como nas ruas ou na casa de minha mãe, onde eu podia sair na hora que bem entendesse. Ali havia sempre um professor ou servente, às vezes até mesmo a Diretora, de olho em nós. Ou quase sempre. E era quando estávamos livres que o meu bando aprontava. Meus cadernos tinham rabiscos de nossos planos, caricaturas dos professores feios; qualquer coisa, mas muito raramente as consequências da Segunda Guerra Mundial ou contas de trigonometria. Nos rabiscos dos meus livros estava registrado todo o dinheiro que conseguíamos. A diretora separava parte do dinheiro dado pelo governo e o remetia aos alunos. Até hoje ainda fazemos isso; sempre achei que dar uma quantia, mesmo que pequena, ajudaria a desenvolver a maturidade dos órfãos e os ensinaria o valor do dinheiro. Muitos compraram um celular depois de alguns meses de economias, tanto que uns seis meses depois da minha chegada ao orfanato, o dinheiro arrecadado pelo bando conseguiu comprar um celular mais simples para o Grandão.
Surpreendentemente eles tinham influencia fora do orfanato. Negociavam com um pessoal ainda mais da pesada do que o líder – às vezes roubavam na rua – mas se qualquer coisa foi descoberta, tudo foi por baixo dos panos e não chegou aos meus ouvidos de pupilo.
Pelo que me lembro, boa parte do tempo (se não todo ele) que tínhamos para passar na rua, eu o passava. Quando tinha já uns 14 anos tive minha primeira “namorada”. Não era realmente sério; encontrávamos-nos nos fundos da quadra onde os garotos mais velhos jogavam basquete para dar uns amassos.
- Por que você demorou? – ela perguntava frequentemente, sua voz em tom infantil e arrastada.
- Foi mal, Cris. Meu professor de violão deu uma atividade extra e não deu para vir antes.
Eu mentia mesmo, de certa forma apreensivo que ela me largasse naquele jogo para caras altos caso descobrisse que eu era uma órfão rebelde do Saint Darlan e não o filho de um rico advogado, como eu dissera que era. Ela era uma garota bem fútil e acho que só estava comigo porque me achava bonito. Gostava das mãos dela no meu cabelo, dos seus lábios carnudos sobre os meus e também a achava uma gata. Éramos jovens e não tínhamos nada a perder.
Claro, ela terminou comigo quando descobriu a verdade, por descuido meu. Num dia frio de outono, passamos a tarde juntos e dei a ela meu casaco para que se aquecesse. Quando fui embora, esqueci-o com ela e ela, achando que faria um agrado, seguiu-me até o orfanato. Imagine a surpresa dela quando viu um pátrio cheio de crianças e adolescentes e não um jardim verde com o carro do ‘papai’ na garagem. Pelo menos foi discreta e no dia seguinte, quando a encontrei no lugar de sempre, jogou a mentira na minha cara, junto o casaco e os rasgos que ela fizera nele em seu momento de fúria. Esqueci-a em pouco tempo e coloquei o casaco no lixo.
Foram quase três anos depois da saída do Grandão, nos quais eu fiquei encarregado de seus negócios.
Tudo passou como um borrão; uma parte de minha vida da qual não tenho muitas lembranças e muito menos orgulho. Quando me dei conta já estávamos no verão de 2008, dentro de um ônibus a caminho de uma praia no sul de Portugal. Catarina Montez nos presenteou com uma viagem incrível e inédita de férias; uma das melhores da minha vida até hoje.
0 comentários:
Postar um comentário